exposição | o fim e o começo

Juliana Russo Burgierman

Onde estão as pessoas dessa cidade que a mão de Ju desenhou com tamanha delicadeza e afeto, mas também com traços duros e cortantes? Por que sumiram dessa paisagem cheia de ruínas industriais, chaminés e muros entrecortados? Salta aos olhos, nesses desenhos, a ausência de gente, um silêncio, o abandono. Apenas pequenos indícios mal deixam entrever que Lódz foi outrora, ao lado de Varsóvia, a mais vibrante capital cultural do judaísmo polonês. Essa comunidade foi inteiramente dizimada pelo nazismo.

Com a liberação dos campos, vários sobreviventes tentaram voltar para casa, na esperança de reencontrar familiares e recompor o lar. Em vão. Tinham sido ocupadas por poloneses, que tratavam qualquer sobrevivente como uma assombração indesejável. Como se atrevia a voltar do inferno e reivindicar seu lugar na terra?

Fica a pergunta. O que procura a neta de um sobrevivente judeu, hoje, na cidade que reluta em lembrar? Como pode ela, através do desenho, penetrar nesse passado que a própria família sempre evitou? Nem a catástrofe lhe é acessível, nem aquele mundo tão cheio de calor e espiritualidade, feito de prece, música, poesia, teatro ídish, utopias socialistas, sionistas ou messiânicas – o que alguns chamam de Idishland – e que a barbárie destruiu. Quiçá alguma ternura por tudo isso que ela não conheceu se insinue em seus desenhos, dando a sentir o que já não se pode ver nem lembrar.

Peter Pál Pelbart

A busca pela ancestralidade levou a artista Juliana Russo Burgierman à Varsóvia e à Lódz, na Polônia, em 2022, quando se iniciaram os ataques da Rússia contra a Ucrânia. Instigada por uma visita inusitada, por sonhos e pela poesia de Wisława Szymborska, suas caminhadas pelas cidades − um dia arrasadas pela Alemanha nazista − resultou na criação da novela gráfica O fim e o começo.

O avô de Juliana era um jovem judeu e comunista quando chegou ao Brasil, na década de 1920. Durante a Segunda Guerra Mundial, teve três de suas quatro irmãs assassinadas no gueto de Lódz, sua cidade natal. A irmã sobrevivente do holocausto fugiu para a União Soviética, em 1941, tendo nos braços a filha de dois meses de idade, agora octogenária. Ludwika e o marido estiveram em São Paulo, em 2016, para uma visita à família Burgierman, sobrenome extinto na Polônia.

“Foi interessante encontrar parentes tão próximos e tão distantes. Sem que tivéssemos nada em comum, éramos tão familiares”, relembra a artista. Ela conta que aquele encontro foi suficiente para despertar a conexão com seus ancestrais do leste do mundo. As primeiras ideias para o terceiro livro de Juliana Russo Burgierman surgiram inspiradas por esta busca.

No início de 2017, ela participou do Retiro dos Artistas, no Polin Museum, em Varsóvia, e aproveitou a oportunidade para visitar a família. Na mesma viagem, conheceu o poema “Fim e começo” (“Koniec i początek”), de Wisława Szymborska, que inspirou Juliana Russo Burgierman. “E tudo se encaixou”, ressalta a autora da novela gráfica O fim e o começo.

Sonho e poesia

Em O fim e o começo, a autora busca construir pontes entre dois tempos, por meio de desenhos que registram paisagens e espaços visitados nesta jornada de regresso às origens. Com recursos básicos, papel e grafite, ela retrata vazios, silêncios, resíduos de memória, resquícios de um passado e busca “alguma reconexão e reparação de uma ancestralidade perdida”. A pesquisa para este projeto foi parcialmente financiada pela Asylum Arts, de Nova Iorque, rede apoiadora da cultura judaica em todo o mundo.

A caminhada se mantém como meio de acesso de Juliana ao objeto de pesquisa, que mais uma vez é a Cidade, como em seus dois primeiros livros publicados. “Tirei algumas fotos que me fizeram pensar na presença do meu corpo naquele local, no regresso a um ‘território proibido’ depois de três gerações”, conta ela. Na apreciação das imagens, a escassez de pessoas dá amplitude à desolação do ambiente urbano, ao mesmo tempo em ruínas e em obras. Através de janelas, fissuras, arcos, o desenho insinua revelar o que está por trás ou o que não está exatamente diante dos olhos. Como plantas medicinais endêmicas daquela região também flagradas pela artista e capturadas pelo seu desenho.

Dialogando com o poema da escritora polonesa, a narrativa de dois sonhos abre e fecha a publicação, criando uma lacuna por onde a autora cria conexões, significados, rotas. “Muitos caminhos moram dentro dos símbolos contidos no sonho. E esse foi o percurso que eu fiz”, reflete Juliana. 

Sobre a autora

Juliana Russo Burgierman nasceu em São Paulo. Desde 2004, mescla seu trabalho autoral com ilustrações para revistas, jornais e livros. Participou de várias exposições coletivas e individuais, integrou o projeto Cidades para Pessoas, uma pesquisa jornalística de iniciativas para cidades mais humanas, e o grupo Urban Sketchers, que reúne desenhistas de todo o mundo. Em 2015, lançou o livro São Paulo Infinita (Editora Gustavo Gili). Em 2017, participou da residência artística para a criação da revista Baiacu, editada por Laerte e Angeli e foi selecionada para encontros de artistas na Polônia e em Montenegro.

É a idealizadora do projeto Sala Aberta, um espaço para exposições de desenho e venda de publicações independentes na sala de sua casa, em São Paulo. Em 2019, lançou seu livro Pequenos Acasos Cotidianos: presentes e desastres da vida urbana, após ter sido contemplada pelo edital Rumos Itaú Cultural. De 2020 a janeiro de 2022 esteve no cerrado do Brasil central pesquisando a sabedoria ancestral do povo quilombola Kalunga, plantas medicinais, diversidade diante da monocultura de soja que vem ocupando essa região do Brasil. Projeto esse que pretende dar continuidade em 2023. O fim e o começo é seu terceiro livro, cuja pesquisa foi contemplada pelo programa Small Grants da instituição Asylum Arts de Nova Iorque.

Fotos por Helena Marc

SERVIÇO

Exposição e lançamento do livro O fim e o começo
Artista: Juliana Russo Burgierman
Texto crítico: Peter Pál Pelbart

Visitação de 15.04.23 a 13.05.23

Lux Espaço de Arte
Edifício Vera | Rua Álvares Penteado, 87
5º andar | Sala 7
Centro histórico | São Paulo SP

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